[Prova de cantores] 1ª ronda

Prova de Cantores, Primeira Etapa.

 Ao anunciarem o início das apresentações de cantores, encaminhei-me para minha tenda, sentindo o coração acelerar conforme dava passos decididos na direção do único lugar onde eu considerava-me realmente a salvo, nas Terras da Coroa. Ainda estava abalada pelo encontro com a princesa Leana, e com a tentativa de assassinato que a atingira. Dúvida pairava em minha mente, conforme eu tentava imaginar razões plausíveis para que uma criança fosse alvo de tamanha covardia. Suspirando, sorri levemente ao lembrar de Aileen Arryn, uma das poucas nobres que haviam sido realmente gentis comigo, em Westeros. Ela era graciosa, mas parecia ocultar certa tristeza persistente. Um coração partido, talvez? Meu encontro com a rainha não fora tão amistoso, por outro lado. Megga Baratheon era uma mulher ainda mais intimidante que seu irmão Devan, de quem eu gostava muito. Mas ela não parecia confiar em mim, ou em minha fé. Refletindo com perspicácia sobre suas palavras e cortesias frias, eu podia notar que ela desacreditava de minhas intenções puras, e não desejava ter-me por perto. Rei Daemon parecia ver as coisas de outro modo. Ele apreciara a minha ajuda no salvamento de sua filha, e mandara um servo para avisar-me de que teríamos uma audiência privada, logo após o resultado das apresentações líricas. E que melhor modo de causar uma boa impressão e remediar a imagem que a rainha formara de mim, do que vencendo as competições de canto? Eu precisava estar perfeita. Não em trajes servis como aqueles que eu levava. Mas bela o bastante para inspirar uma canção. O que não seria impossível, com os instrumentos certos.

 Em menos de uma hora, seria a minha ver de executar uma performance para os nobres e servos das Casas Grandes e Menores. Sabia que as opiniões do povo comum não eram as melhores ao meu respeito, principalmente entre os mais religiosos. Ainda assim, alguns homens admiravam minha beleza e invejavam Lord Aspen por ser favorecido de meus préstimos. Em breve, as notícias de minha noite com Jensen Lannister se espalhariam, e logo ele seria invejado também. Entre as mulheres, havia muito rancor e má vontade. Mas também admiração, pela minha cultura e inteligência. Não era comum que mulheres tivessem tanto valor quanto homens, naquele país onde a maior tarefa de uma Lady era prover um herdeiro. Uma mulher solteira e religiosa da Fé dos Sete, jamais teria a autonomia de uma sacerdotisa vermelha. E isto era atraente, para donzelas e senhoras mais necessitadas de libertação. Inspirava respeito.

   Despindo o tecido macio que levava sobre o corpo, girei nua pela tenda à procura do baú que eu ganhara de presente, da Campina. Vestidos de rico corte, com sedas cruas ou estampadas, e bordados com transparência digna de instigar o próprio R’hllor. Todos em diferentes tons de vermelho. Uma cortesia de Aspen, agora que eu o informara de que deixaria suas terras durante algum tempo. Além dos guardas responsáveis pela minha segurança, não haviam limites para sua generosidade. Coloquei em meu dedo anelar direito o anel de rubis, com o formato de uma rosa. Um símbolo do Lord responsável por mim. O meu patrocinador e mecenas. O vestido vermelho em estilo westerosi era um tanto apertado na cintura. Aqueles espartilhos eram mesmo infernais. Tensa e sentindo o tecido sufocar-me, retirei aquela parte do vestuário, deixando meus seios livres sob o decote.

    Mantive os cabelos soltos, pois gostava da sensação de conforto ao tê-los ao meu redor. Sensata, passei meu xale rubro novamente ao redor dos braços, prendendo o fecho de minha gargantilha de ouro e rubi, que eu recebera no dia em que fora aceita nos serviços do Deus Vermelho. Olhando-me no espelho de corpo inteiro, apanhei a tintura negra de Meereen, lembrando-me dos traços exóticos que as mulheres das pirâmides costumavam utilizar, na época em que visitei a cidade anciã. Cobrindo o contorno de meus olhos e engrossando os cílios, puxei levemente na direção das têmporas, formando pequenas linhas. Olhar para meus próprios olhos castanhos, era como contemplar o rosto de uma mulher sagrada. Uma deusa de pele amêndoa, cabelos negros e olhos de gata. Quase não me reconheci. Vibrando a garganta com uma nota baixa, em murmúrio, removi minha nova harpa de dentro do baú. Assim como meu anel, ela também continha rosas e gavinhas do brasão Tyrell. Minha vitória seria dedicada a eles, que certamente haviam apostado a meu favor. Não queria desapontá-los, nem a nenhum cidadão dos Sete Reinos corajoso o bastante para colocar seu dinheiro numa estrangeira sem terras, cuja presença desagradava a muitos. No entanto, não seria à rosa que eu dedicaria a minha voz. Mas ao leão. Deslizando como um vulto vermelho através da multidão, dirigi-me até a grande tenda onde nobres e plebeus já começavam a aglomerarem-se, à espera das primeiras apresentações. Enquanto aguardava minha vez, mantive firma a concentração, ampliando minha força de vontade com a presença de R’hllor. Os olhares curiosos na minha direção pareciam inflar minha tranquilidade, alimentando o meu desempenho com a hostilidade. Principalmente dos poucos septões que transitavam pelo local. Lenta e delicadamente, adiantei-me para o centro da tenda, quando uma mulher terminou seu ato. Ela não havia cantado, preferindo uma representação dramática. O que era inusitado. Sem considerar muito aquilo, lentamente sentei-me sobre um pequeno banco de madeira, colocado à minha disposição por um servo.

- Meus senhores, e minhas senhoras. Sou Zakintia de Asshai da Sombra. Represento a Casa Tyrell, e cantarei As Chuvas de Castamere. – Com uma reverência profunda, escondi meu sorriso enquanto empertigava a coluna, repousando minha harpa entre as coxas.

    Certamente aquela notícia seria uma surpresa. Traços de memória, como uma névoa espessa, desfilavam nas linhas de meu pensamento. Os braços firmes de Jensen Lannister, sua voz sedutora e seu sorriso maldoso. Ele explicara-me o orgulho que aquela canção trazia à sua família. E eu gostaria de cantar algo conhecido pelos westerosis, mas que ainda significasse algo para mim. Depois de nossos momentos juntos, as Chuvas representavam nosso pequeno segredo. Um prazer secreto. Além disso aquela canção também era, como todos os meus gestos, um cálculo. Seria uma forma de reparar publicamente qualquer desentendimento entre os Tyrells e os Lannisters, depois do ocorrido no Acampamento. Inclinando minha cabeça para o lado, respirei profundamente, enquanto minhas longas unhas começavam a traçar os primeiros acordes da canção. Aquela não era a forma como costumavam cantar em Westeros, mas a versão que eu ouvira em Lys, de um bardo bêbado. Seria divertido.




  Minha voz soava como uma carícia, mais delicada do que trágica. Tentei imprimir o tom de quem desdenha, ao invés de imprimir o trágico já nas primeiras notas. Notei leves expressões de desconforto da parte de alguns membros da audiência, principalmente de alguns homens e mulheres de cabelos negros e traços severos. Seriam os nortenhos? Jensen mencionara que eles não tinham uma boa história com os Lannisters. Bem, aquilo não me dizia respeito. Minha canção era para o leão dourado, e procurei com meus olhos por ele, na plateia. Ao encontrar seu rosto, um leve sorriso abriu-se em meus lábios, enquanto eu preparava-me para a segunda estrofe. Com a profusão de gestos e notas musicais, era quase simples sentir uma segunda presença em meu interior. O poder de uma história secular, e o orgulho de uma família, de uma tradição inteira. Todo aquele sentimento e senso de comprometimento, em uma simples canção.


Minha voz subiu mais uma oitava, enquanto tornava-se um pouco mais firme e desafiadora. Aquele era o trecho de maior intensidade, que selava o destino da família que ousou desafiar aos Lannisters. Tive de imprimir a emoção adequada, enquanto sentia as vibrações mais incisivas de minha harpa reverberando através da minha carne. Como um beijo de fogo no meio da noite. Como o toque de meus dedos, através do corpo de Jensen. Como eu entregara-me ao leão, agora entregava-me à canção. Era quase palpável a atmosfera de prazer que me envolvia, uma vez que eu utilizava as técnicas de representação que eu absorvera da Dama Azul de Lys, em meus anos como sua conselheira. Transfigurando-me numa donzela pesarosa, curvei-me levemente para imprimir à próxima peça trágica de meu cântico, a quantidade correta de lamento.




  Emocionada, comecei a tocar uma composição harmônica ao fim da estrofe, acrescentando notas de saudade de Asshai da Sombra, capazes de imprimir maior tom de desespero e insegurança. Eram notas tocadas à beira do mar, por mulheres que viam seus homens partirem sem garantia de retorno. Um pedido mágico aos céus e ao mar, que os devolvessem. Agora, o lamento era pela família vassala extinta, e pelas lágrimas e gritos afogados por Tywin Lannister. Quando ergui o olhar para minha audiência, ele estava cintilando com lágrimas. Como uma qarthena de lágrimas fáceis faria, eu parecia tão emocionada quanto orgulhosa. Notei que minha aparente emoção comovera alguns membros da audiência, mas talvez por outras lembranças, como o Casamento Vermelho. Era de fato triste, um misto de dor, raiva e pesar. Uma verdadeira saraivada de emoções, como flechas a voar do meu coração, para os peitos desprotegidos dos westerosis.


   Os acordes finais morreram enquanto meus dedos encerravam suas composições. Minhas unhas estavam levemente dormentes, mas a sensação de plenitude era familiar e valorosa. Eu conseguira. Havia interpretado com minha alma, e independente do resultado, podia dizer que não seria facilmente esquecida por aquelas pessoas. Curvei-me diante do som de aplausos, levemente aliviada agora que toda a pressão havia passado. Com delicadeza e determinação, retirei-me do local com um ar altivo e passos firmes. O farfalhar de minhas vestes acompanhava a brisa que tocava meus cabelos. Deixando nas mãos de R’hllor a decisão sobre meu destino, perguntei com certo humor negro, o que Jensen pensaria daquilo tudo? Não era costume meu conceder indultos de afeição a homens livremente. Temia que seu ego se tornasse ainda mais inflado. Mas bem, talvez aquilo não fosse de todo ruim. Afinal, leões felizes eram mais fáceis de domar, desde o princípio dos tempos...